Utopias vol. 10

Isabela Lobato
5 min readSep 6, 2020

Quando eu tinha uns 8 anos, sentei pra digitar meu primeiro texto. Foi no netbook que minha irmã tinha acabado de ganhar, a tampa era amarelo-marca-texto e do tamanho de uma agenda, assim, uma coisa super moderna. Por onde andam os netbooks, por falar nisso? Era muito chique a ideia de um computador portátil e ainda por cima pequenininho, e fiquei um tempão pedindo pra ela deixar eu usar um pouquinho, no meu quarto. Ela deve ter perguntado pelas minhas razões, eventualmente cedido e me dado instruções de como evitar alguns tipos de destruição imagináveis. Não tinha wi-fi na casa, portanto estavam nulos os perigos da internet.

Eu queria a sensação de estar no meu canto, com uma máquina maneira só pra mim, na minha mão. Me deitei na cama de barriga pra baixo, como os personagens da tv fazem, apesar de ser super desconfortável e anti-ergonômico, e abri o Word. Do meu lado, um pedaço da Folhinha, o caderno infantil da Folha de São Paulo que vinha aos domingos e meu avô me dava. Eu adorava. Muito. Gostava demais da Folhinha.

Esse pedaço do caderno especificamente era sobre mundos imaginários do folclore, da literatura e dos filmes, tipo Atlântida, a cidade submersa, e Eldorado, a cidade de ouro. E Utopia. Uma ilha criada por Thomas More, onde todo mundo é feliz, solidário, amigo, broder, maneiro, da paz, racional e cheiroso.

Essa palavra me encantou. Essa ideia me encantou ainda mais. O primeiro texto que sentei pra digitar a sério, tipo assim: “tive essa ideia aqui e quero transformá-la em palavras só porque sim”, foi sobre Utopia. Não faço ideia do que escrevi. Lembro que nesse primeiro contato com a ideia de utopia, também imaginei que lá deveria ter várias sereias de cabelo cor de berinjela (?). Pode ser uma coisa da ilustração do jornal, ou sei lá, só a ideia de que um lugar bom-demais-pra-ser-verdade tinha que ter sereias pra ser legal mesmo.

Não sei porque esse episódio continua voltando pra minha mente esses dias. Lembro com detalhes da sensação de maturidade que foi sentar pra escrever algo que eu pensei em um computador. Lembro do sol da tarde da casa do meu vô e da minha vó (que é onde eu moro hoje, mas naquela época era mais ensolarado), e de encontrar a Folhinha já separada, esperando por mim. De ler no sofá depois do almoço enquanto todos os adultos ainda falavam e bebiam. Continuar lendo quando os mesmos adultos iam curtir a siesta.

Sinto que tinha os olhos muito abertos, e viver era um pouco mais gostoso. Mas sei lá, talvez seja uma idealização meio sem noção da minha infância. Talvez essa nem seja a primeira vez que peguei pra escrever, talvez eu nem tivesse deitada de barriga pra baixo igual as personagens da Disney. Mas eu nunca deixei de pensar nesse negócio de utopia — nunca saiu da minha mente.

Se eu parar pra pensar, me acompanhou em quase tudo que produzi até hoje. É a base da história que escrevi por anos nas aulas do ensino fundamental (ao invés de prestar atenção) — são mais de 60 páginas manuscritas, em que construí um romance juvenil que se passava numa sociedade que inventei, em que não havia nenhum tipo de dinheiro e todo mundo era bom. Um negócio que quase daria orgulho em Thomas More, não fosse o enredo adolescente que talvez não agradasse seu paladar literário de 500 anos atrás.

A ideia de utopia continuou na minha mente, e eu tentei colocar em prática pequenas utopias muitas vezes desde então. Algumas com sucesso e impacto sem-medida na minha formação, tipo quando os estudantes ocuparam as escolas. Você consegue pensar em mais de 2.000 instituições ocupadas hoje em dia? Algum bolsonarista com certeza entraria lá pra atirar na gente, sei lá. Se tentam atacar até o STF, não vão atacar escola?

Em 2017 eu estava muito frustrada quando escrevi o texto “eu e essa mania de me agarrar à utopias”. Sei que você nunca leu, fique tranquila, porque provavelmente também nunca vai, a não ser que eu já tenha virado uma velha desapegada ou morrido como uma artista relevante. Em resumo, nele eu desconto minhas decepções juvenis e me digo que a vida é meio merda mesmo de forma bem dramática. Eu digo que as ideias utópicas às quais nos agarramos são “ocas”, mas até hoje não parei de me agarrar a esse tipo de coisa. Essa esperança que é meio burra mesmo mas que é o que faz os dias terem um pouco de pirlimpimpim.

Ano passado tive que fazer um texto pra faculdade com reflexões baseadas em um texto sobre marxismo que li. E lá estava ela de novo, me voltando com toda a força, me convencendo de que coerência é dispensável, a contradição de sonhar o impossível não é uma falha — é a forma da realidade, e que alimentar utopias é tudo de bom. Melhor fazer uma citação direta: “Se ser 100% coerente significa não vislumbrar possibilidades que talvez nem se realizem, não sei se quero. Afinal, alimentar uma utopia é tudo de bom. Quem nunca?”. Juro que essa é a frase final do meu trabalho de nível superior. Imagino a professora corrigindo, uma taça de vinho do lado e pensando “ai, os alunos do primeiro período”.

Enfim, tudo isso pra dizer que gosto dessa ideia. Que daria tudo pra encontrar esse número da Folhinha de novo. E o texto do netbook amarelo neon, pra entrar na coletânea.

Ano passado, na Fliaraxá, anotei no meu caderninho algo que ouvi o escritor angolano Agualusa dizer, fazendo uma adaptação de uma frase antiga do Mia Couto: “Só não sou cego quando escrevo”.

Só não sou cega quando escrevo.

Só não sou cega quando escrevo.

Só não sou cega quando escrevo.

Acrescentado alguns minutos depois: não precisei dar tudo pra encontrar esse número da Folhinha, a internet fez isso por mim. E eu me emocionei toda, socorro. E se você reparar bem, de fato tem uma sereia de cabelo roxo na ilustração da reportagem. Puta merda. Aí posso citar a frase original do Mia Couto:

“Só não sou cego quando leio”.

Fonte: Arquivo da Folha de São Paulo. Disponível aqui. Acesso em 06/09/2020.

--

--