Crônicas do Censo I: franzir o rosto com simpatia e outros detalhes

Observar as pessoas é viciante

Isabela Lobato
4 min readSep 17, 2022

Aquela mulher me deixou encantada. A maior parte dos questionários que aplico como recenseadora são iguais: sou recebida no portão por pessoas de chinelo e com as chaves de casa na mão. As mais simpáticas me oferecem pra passar pra dentro, pra sair do sol ou sentar em alguma mureta. Outras sequer abrem a porta. Respondem entediadas as perguntas que já dominei como fazer: quem mora lá, como chega água, por onde sai esgoto e lixo, qual a cor de todo mundo, se sabem ler. É coisa rápida, em geral levo menos de 7 minutos em cada uma.

Escolhi essa coisa de ser recenseadora pela curiosidade de ver as pessoas e suas casas, ouvir suas vozes, pensar na demografia de quem me rodeia. Ah, e também pra tentar perder um pouco minha timidez pra falar com desconhecidos. Tem sido ótimo, mas o obstáculo é que a maior parte das pessoas não quer conversar. Não têm tempo pra isso. Têm medo, ou pressa, ou preguiça, ou filhos pra dar banho, ou trabalho, enfim.

Então pra saciar essa curiosidade doida, eu tenho prestado atenção no que é possível. No que sobra na visão periférica, ao redor do dispositivo de temperamento insuportável onde insiro as respostas curtas das pessoas. E é aí que entra o encantamento mais estranho, até agora.

Essa mulher tinha entre uns 30 e 40 anos. Ela me disse sua idade, claro, mas eu já esqueci. Eu já inha seguido para o próximo prédio depois de tocar interfone no apartamento dela pela terceira ou quarta vez em vários dias, quando ela apareceu na janela, gritando que ia descer e que não me atendeu porque estava no banheiro. Eu voltei alguns passos e esperei no portão de grades da rua, de frente para um corredor que devia dar no hall do prédio, fora da minha visão. Esse prédio é em um lugar alto e, de trás do muro dos fundos, eu só via o céu de fim de tarde típico da seca de beagá: laranja e roxo, empoeirado.

A mulher desceu e, pra começar, já tive a distinta sensação de que ela era cabelereira. Não sei, tinha cara. Algo com o cabelo chanel pintado de loiro, ou o short jeans nas coxas grossas, ou o jeito desembolado de falar. Mas isso não tem nada a ver. Ela foi simpática comigo, disse que tinha recebido meus recados de quando passei e não a encontrei. Me atendeu na calçada, em frente ao portão, que foi fechado para que não apitasse. Ouço essa justificativa de quase todos os moradores de prédios.

Logo no começo, a terceira pergunta do questionário exige que se delimite um ou uma responsável para o domicílio. A possível cabelereira pensou e disse que seria o marido dela. Me passou o nome dele, perguntei se o sexo era masculino ou feminino — pergunta que geralmente eu já sei a resposta e silenciosamente meço o caráter das pessoas pela forma com que elas reagem. Eu acho que ela respondeu sem titubear, como fazem as pessoas que já superaram a quinta série. (Masculino).

Em seguida, perguntei a data de nascimento. É aí que veio o encantamento mais estranho. Foi a minúncia que pude observar daquela mulher, o detalhe de humanidade, o segredo que ela deixou os músculos da face revelarem. Nenhuma informação que saía da boca dela era relevante pra mim. Na verdade, eu me esqueço dos dados das pessoas imediatamente, e confesso que nem lembro mais a cara, o nome, a rua dela. Gosto é de como elas falam. Gosto da forma.

E a forma, nesse caso, foi um contorcionismo de rosto muito engraçado. Ela não lembrava a data de nascimento do marido e, sei lá, parecia achar que franzir todos os músculos e fechar os olhos e dilatar as narinas e fazer um biquinho e olhar para cima faria com que a memória voltasse. Eu assisti essa fração de segundo, com o céu colorido e empoeirado ao fundo, e soube que era uma memória ficando sólida na minha cabeça.

O jeito que essa moça franziu o rosto é o tipo de detalhe totalmente esquecível, poderia se achar irrelevante, até. Mas foi espontâneo, foi tão inexplicável, mas foi tão familiar, e ao mesmo tempo, engraçado. E foi tão intenso, por só uns dois segundos, sim, mas tão intenso. É o tipo de careta que faz zumbir o ouvido se você tenta sustentar. Funcionou, ativou os neurônios, e ela lembrou a data de nascimento do homem.

A maior parte dos autores não sente a necessidade de detalhar como se moveu cada músculo de cada personagem de uma trama. Mas acho que nisso daí, eles falham. Ali se revela muito. Porque ali estava aquela mulher, fazendo careta pra responder uma desconhecida sobre seu marido, e eu soube que tinha capturado algo dela que era muito mais valioso do que todos os dados pessoais que ela me passou.

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